Perdoai as nossas ofensas
Por baixo da sotaina conservadora
e dogmática, João Paulo II revelou-se exímio e corajoso desbravador
de caminhos nunca antes trilhados. Sem pôr em risco um único milímetro
do alicerce que sustenta a tradição, conduziu a Igreja Católica
a um protelado e necessário encontro com os tempos atuais. Firme (também)
nesse propósito, o mesmo papa que pretendeu restaurar uma visão
moral em completa dissonância com o mundo moderno foi o que tomou para si
a tarefa de rever a história da Igreja, para que ela chegasse ao milênio
seguinte expiada de seus pecados.
"A Inquisição
é um capítulo doloroso do qual os católicos devem se arrepender",
afirmou João Paulo II no primeiro ano de seu pontificado, em 1978, como
que antecipando o revisionismo que se seguiria. O primeiro alvo direto foi o obscurantismo
científico: ele redimiu o italiano Galileu Galilei e o polonês Nicolau
Copérnico, que derrubaram a cosmologia cristã ao descobrir que a
Terra não se achava no centro do universo. "Galileu, fiel e sincero, mostrou-se
mais perspicaz do que seus adversários teólogos", disse. Reabilitou
também o inglês Charles Darwin, pai da teoria de que o homem é
parente longínquo do macaco – e, portanto, não descende dos
personagens bíblicos Adão e Eva. "Hoje, os novos conhecimentos e
as descobertas obtidas em várias disciplinas nos levam a reconhecer na
teoria da evolução mais que uma hipótese", afirmou. Depois
de admitir que os "hereges" estavam certos, o papa publicou em 1998 a encíclica
Fides et Ratio, que procura conciliar fé e razão e é
considerada pelos teólogos uma espécie de testamento intelectual
do pontífice. Fora do âmbito da ciência, João Paulo
II pediu desculpas pelo fato de a Igreja Católica ter compactuado com a
escravização de africanos e índios, e por não ter
tido um papel mais efetivo na luta contra o nazismo. Foram, ao todo, mais de 100
pedidos de desculpas. O auge da expiação ocorreu na missa que deu
início à Quaresma do ano 2000. "Perdoamos e pedimos para ser perdoados",
proclamou João Paulo II na Basílica de São Pedro, passando
em seguida a listar os atos a ser perdoados – entre eles, pecados contra
a unidade cristã (perseguição a protestantes e ortodoxos),
uso da violência "a serviço da verdade" (cruzadas e Inquisição)
e a marginalização das mulheres.
A formulação de cada um desses pedidos de desculpas é um
atestado da habilidade do papa de propalar humildade sem perder a majestade –
de todas as ações condenáveis, a Igreja sai incólume
em sua divindade e infalibilidade. "O pecado é sempre pessoal, ainda que
machuque a Igreja como um todo", esclarece o documento "Memória e Reconciliação:
a Igreja e as Culpas do Passado", divulgado pelo Vaticano dias depois do mea-culpa
papal de 2000. O objetivo da expiação de pecados cometidos em nome
do catolicismo ao longo de dois milênios foi o de "conhecer-nos a nós
mesmos e nos abrirmos à purificação das memórias e
à verdadeira renovação", corroborou o todo-poderoso cardeal
alemão Joseph Ratzinger, braço direito do papa, prefeito da Congregação
para a Doutrina da Fé e chefe da comissão que elaborou o documento.
Para conciliar desculpas com não-culpa, o papa raramente foi direto na
expiação. Em vez disso, usou de eufemismos e individualizou pecados.
"Pediu perdão na voz passiva", como definiu em um artigo a revista americana
U.S. News & World Report. Às vítimas do holocausto, João
Paulo II expressou em 1998 o arrependimento de que os cristãos não
tivessem mostrado a necessária "resistência espiritual" diante da
perseguição nazista. Aos povos nativos das Américas, pediu
desculpas pelos "desatinos" dos missionários. Às outras religiões
cristãs, "perdão, em nome de todos os católicos, pelos erros
causados a não-católicos ao longo da história". Sobre as
mulheres, admitiu que "não poucos" membros do clero foram culpados de discriminação,
"pelo que ofereço sinceras escusas".
Outra
característica do pontificado de João Paulo II afinada com seu tempo
foi o esforço em prol de uma maior aproximação com as outras
religiões, cristãs ou não. Na trilha ecumênica aberta
pelo Concílio Vaticano II, ele assinou acordos importantes com anglicanos
e protestantes e encetou uma verdadeira cruzada pacífica para quebrar o
gelo das relações com as vertentes ortodoxas do cristianismo. O
papa obteve certo progresso na tentativa de reconciliação com os
ortodoxos da Grécia – a visita a Atenas em maio de 2001 começou
sem um único clérigo importante da Igreja local no aeroporto e terminou
com troca de amabilidades e a assinatura de um comunicado conjunto condenando
"a violência, o proselitismo e o fanatismo em nome da religião".
Já entre a liderança da Igreja Ortodoxa Russa, João Paulo
II pouco avançou: ele jamais beijou o solo da Rússia, onde o patriarca
Alexis II alerta constantemente os fiéis contra as "manobras" do Vaticano
para expandir sua influência. Outra medida desse seu insucesso foi a recepção
gélida na Ucrânia, em junho de 2001. À missa campal compareceram
apenas 20.000 pessoas, das 350.000 esperadas. E a desconfiança dos ortodoxos
russos em relação às boas intenções papais
só fez aumentar depois que Ratzinger divulgou um documento em que reafirmava
que a salvação humana estava apenas na Igreja Católica, um
dogma para lá de cismático.
No que
se refere ao diálogo inter-religioso, João Paulo II fez com que
a Igreja se aproximasse de judeus e do mundo islâmico, antes vistos como
inimigos figadais dos católicos – foi o primeiro papa a tirar os sapatos,
como manda a tradição, e entrar em uma mesquita (em Damasco, em
maio de 2001) e o primeiro a visitar uma sinagoga (em Roma, em 1986). Outro gesto
explícito de aproximação com o judaísmo deu-se em
março de 2000, logo depois da divulgação do documento "Memória
e Reconciliação", quando o papa, durante uma emocionada visita a
Israel, foi ao Muro das Lamentações e, como é de praxe, colocou
um bilhete numa fenda entre as pedras. Nele, mais uma vez, pedia perdão
pelos sofrimentos infligidos aos judeus em nome da religião. Muito antes
disso, em 1985, já proclamava: "Que os filhos de Abraão – judeus,
cristãos e muçulmanos – possam viver juntos e prosperar em
paz".
Quase dez anos depois, iria ainda mais longe
em relação ao Islã, ao dizer: "Não se pode deixar
de admirar a fidelidade dos muçulmanos à oração. Ela
é um modelo para aqueles cristãos que, desertando suas maravilhosas
catedrais, rezam pouco ou não rezam nunca". E daria passo mais largo ainda
ao sair em defesa da religião muçulmana no maremoto antiislâmico
que se seguiu aos atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos. No âmbito
das religiões não-cristãs, o diálogo proposto pelo
papa só empacou mesmo com os hinduístas, antípodas do monoteísmo,
que há séculos vivem às turras com a reduzidíssima
comunidade cristã da Índia. No mais, João Paulo II fez o
que se propôs: agradou, reabilitou e recuperou laços rotos ou rompidos
há séculos, ao confessar publicamente, como nenhum papa antes dele,
erros e excessos do passado.
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