quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Papa João Paulo II . 6 de abril de 2005

Perdoai as nossas ofensas

 

Por baixo da sotaina conservadora e dogmática, João Paulo II revelou-se exímio e corajoso desbravador de caminhos nunca antes trilhados. Sem pôr em risco um único milímetro do alicerce que sustenta a tradição, conduziu a Igreja Católica a um protelado e necessário encontro com os tempos atuais. Firme (também) nesse propósito, o mesmo papa que pretendeu restaurar uma visão moral em completa dissonância com o mundo moderno foi o que tomou para si a tarefa de rever a história da Igreja, para que ela chegasse ao milênio seguinte expiada de seus pecados.
"A Inquisição é um capítulo doloroso do qual os católicos devem se arrepender", afirmou João Paulo II no primeiro ano de seu pontificado, em 1978, como que antecipando o revisionismo que se seguiria. O primeiro alvo direto foi o obscurantismo científico: ele redimiu o italiano Galileu Galilei e o polonês Nicolau Copérnico, que derrubaram a cosmologia cristã ao descobrir que a Terra não se achava no centro do universo. "Galileu, fiel e sincero, mostrou-se mais perspicaz do que seus adversários teólogos", disse. Reabilitou também o inglês Charles Darwin, pai da teoria de que o homem é parente longínquo do macaco – e, portanto, não descende dos personagens bíblicos Adão e Eva. "Hoje, os novos conhecimentos e as descobertas obtidas em várias disciplinas nos levam a reconhecer na teoria da evolução mais que uma hipótese", afirmou. Depois de admitir que os "hereges" estavam certos, o papa publicou em 1998 a encíclica Fides et Ratio, que procura conciliar fé e razão e é considerada pelos teólogos uma espécie de testamento intelectual do pontífice. Fora do âmbito da ciência, João Paulo II pediu desculpas pelo fato de a Igreja Católica ter compactuado com a escravização de africanos e índios, e por não ter tido um papel mais efetivo na luta contra o nazismo. Foram, ao todo, mais de 100 pedidos de desculpas. O auge da expiação ocorreu na missa que deu início à Quaresma do ano 2000. "Perdoamos e pedimos para ser perdoados", proclamou João Paulo II na Basílica de São Pedro, passando em seguida a listar os atos a ser perdoados – entre eles, pecados contra a unidade cristã (perseguição a protestantes e ortodoxos), uso da violência "a serviço da verdade" (cruzadas e Inquisição) e a marginalização das mulheres.
A formulação de cada um desses pedidos de desculpas é um atestado da habilidade do papa de propalar humildade sem perder a majestade – de todas as ações condenáveis, a Igreja sai incólume em sua divindade e infalibilidade. "O pecado é sempre pessoal, ainda que machuque a Igreja como um todo", esclarece o documento "Memória e Reconciliação: a Igreja e as Culpas do Passado", divulgado pelo Vaticano dias depois do mea-culpa papal de 2000. O objetivo da expiação de pecados cometidos em nome do catolicismo ao longo de dois milênios foi o de "conhecer-nos a nós mesmos e nos abrirmos à purificação das memórias e à verdadeira renovação", corroborou o todo-poderoso cardeal alemão Joseph Ratzinger, braço direito do papa, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e chefe da comissão que elaborou o documento. Para conciliar desculpas com não-culpa, o papa raramente foi direto na expiação. Em vez disso, usou de eufemismos e individualizou pecados. "Pediu perdão na voz passiva", como definiu em um artigo a revista americana U.S. News & World Report. Às vítimas do holocausto, João Paulo II expressou em 1998 o arrependimento de que os cristãos não tivessem mostrado a necessária "resistência espiritual" diante da perseguição nazista. Aos povos nativos das Américas, pediu desculpas pelos "desatinos" dos missionários. Às outras religiões cristãs, "perdão, em nome de todos os católicos, pelos erros causados a não-católicos ao longo da história". Sobre as mulheres, admitiu que "não poucos" membros do clero foram culpados de discriminação, "pelo que ofereço sinceras escusas".
Outra característica do pontificado de João Paulo II afinada com seu tempo foi o esforço em prol de uma maior aproximação com as outras religiões, cristãs ou não. Na trilha ecumênica aberta pelo Concílio Vaticano II, ele assinou acordos importantes com anglicanos e protestantes e encetou uma verdadeira cruzada pacífica para quebrar o gelo das relações com as vertentes ortodoxas do cristianismo. O papa obteve certo progresso na tentativa de reconciliação com os ortodoxos da Grécia – a visita a Atenas em maio de 2001 começou sem um único clérigo importante da Igreja local no aeroporto e terminou com troca de amabilidades e a assinatura de um comunicado conjunto condenando "a violência, o proselitismo e o fanatismo em nome da religião". Já entre a liderança da Igreja Ortodoxa Russa, João Paulo II pouco avançou: ele jamais beijou o solo da Rússia, onde o patriarca Alexis II alerta constantemente os fiéis contra as "manobras" do Vaticano para expandir sua influência. Outra medida desse seu insucesso foi a recepção gélida na Ucrânia, em junho de 2001. À missa campal compareceram apenas 20.000 pessoas, das 350.000 esperadas. E a desconfiança dos ortodoxos russos em relação às boas intenções papais só fez aumentar depois que Ratzinger divulgou um documento em que reafirmava que a salvação humana estava apenas na Igreja Católica, um dogma para lá de cismático.
No que se refere ao diálogo inter-religioso, João Paulo II fez com que a Igreja se aproximasse de judeus e do mundo islâmico, antes vistos como inimigos figadais dos católicos – foi o primeiro papa a tirar os sapatos, como manda a tradição, e entrar em uma mesquita (em Damasco, em maio de 2001) e o primeiro a visitar uma sinagoga (em Roma, em 1986). Outro gesto explícito de aproximação com o judaísmo deu-se em março de 2000, logo depois da divulgação do documento "Memória e Reconciliação", quando o papa, durante uma emocionada visita a Israel, foi ao Muro das Lamentações e, como é de praxe, colocou um bilhete numa fenda entre as pedras. Nele, mais uma vez, pedia perdão pelos sofrimentos infligidos aos judeus em nome da religião. Muito antes disso, em 1985, já proclamava: "Que os filhos de Abraão – judeus, cristãos e muçulmanos – possam viver juntos e prosperar em paz".
Quase dez anos depois, iria ainda mais longe em relação ao Islã, ao dizer: "Não se pode deixar de admirar a fidelidade dos muçulmanos à oração. Ela é um modelo para aqueles cristãos que, desertando suas maravilhosas catedrais, rezam pouco ou não rezam nunca". E daria passo mais largo ainda ao sair em defesa da religião muçulmana no maremoto antiislâmico que se seguiu aos atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos. No âmbito das religiões não-cristãs, o diálogo proposto pelo papa só empacou mesmo com os hinduístas, antípodas do monoteísmo, que há séculos vivem às turras com a reduzidíssima comunidade cristã da Índia. No mais, João Paulo II fez o que se propôs: agradou, reabilitou e recuperou laços rotos ou rompidos há séculos, ao confessar publicamente, como nenhum papa antes dele, erros e excessos do passado.

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